segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O impassível Sr. Darcy


O impassível Sr. Darcy

O protagonista esnobe e rabugento de Orgulho e preconceito está fazendo duzentos anos — e nunca esteve tão bem. Qual o seu segredo? A jornalista e romancista Allison Person ensaia uma resposta. Veja ao final do post como concorrer a 2 exemplares deste clássico.
Numa noite invernal de 1995, jantei com o sr. Darcy num acolhedor restaurante italiano em Covent Garden. Mal toquei na comida, tão absorta em devorar o homem a meu lado. Seu porte era elegante, os gestos, a um só tempo, contidos e envolventes, os olhos, duas lagoas profundas nas quais seria um prazer afundar. Do que me lembro, apaixonei-me por Darcy pela primeira vez há uns vinte anos, e agradeci aos céus por ainda conseguir lembrar o que ele apreciava em uma mulher. “Seja jovial e interessante”, recomendei a mim mesma. Jovial e interessante. Como Elizabeth Bennet.
No restaurante, as mulheres faziam intricados desvios para chegarem ao lavabo, a fim de poderem passar rente à nossa mesa e olhá-lo de frente. Ele admitiu seu desconforto por ser o objeto desse tipo de fascínio vulgar.
“Não se preocupe”, eu disse, citando (e torcendo para soar jovial e interessante) o início da devastadora carta de Darcy a Lizzy após ela ter recusado seu pedido de casamento. “É melhor ir se acostumando a todo esse assédio.”
A bem da verdade, minha companhia naquela noite não era de fato o sr. Darcy, e sim Colin Firth, ator que recentemente irrompera para a fama — ou, mais apropriadamente, emergira direto para ela ao sair de um lago em uma camiseta justa e molhada — ao interpretar Darcy na adaptação de Orgulho e preconceito dirigida por Andrew Davies para a BBC. Finda a filmagem, Firth se ausentou do país para um trabalho no exterior. Ao retornar, a Inglaterra já estava rendida à Darcymania. Ao pedir a ele que comentasse sobre o assédio, Firth assumiu a expressão levemente cordial de um simples mortal que sabe estar levando o crédito pela força de um personagem ficcional (a mesma expressão apresentada atualmente por Robert Pattinson, o astro dos filmes da série Crepúsculo). Sujeito modesto, Firth contou o que aconteceu ao dizer a sua velha tia, uma devota de Jane Austen, ter sido escolhido para o papel de Darcy. “Não seja tolo, Colin”, a tia respondeu, ferina. “O sr. Darcy é bonito e atraente de doer.”
Faz duzentos anos que “o mais orgulhoso e antipático homem do mundo” adentrou os salões de Hertfordshire e recusou a dança com a srta. Bennet por ela ser “razoável; mas não [...] bonita o bastante para me tentar”. A idade não tirou o vigor do sr. Darcy, nem a inflação reduziu o poder de suas 10 mil libras anuais — meio milhão em valores atualizados. Desde então, o romance de Darcy e Elizabeth estabeleceu o padrão para as histórias de amor com percalços: pavimentar o caminho para o encontro de duas mentes afins com um bocado de obstáculos, removendo-os a seguir um por um. Em Orgulho e preconceito, a posição social inferior de Lizzy (e alguns parentes desagradáveis) e a soberba de Darcy são o que os mantêm separados por alguns dos mais inebriantes capítulos da língua inglesa.
Fui apresentada a Fitzwilliam Darcy aos dezesseis anos. Não foi amor à primeira vista; e nem era pra ser. O gênio de Austen em Orgulho e preconceito consiste em ela nos apresentar Darcy do ponto de vista ultrajado de Elizabeth. Enquanto Lizzy vai confirmando sua convicção de que esse arrogante dono de uma vasta propriedade em Derbyshire não passa de um mau partido, um mortificado Darcy vai percebendo estar cada vez mais atraído por aquela jovem vivaz. “Mas, assim que admitiu claramente para si e seus amigos que ela não tinha um traço de beleza no rosto, começou a perceber que se tornava um rosto extraordinariamente inteligente, pela bela expressão de seus olhos escuros.”
Nenhum autor conseguira até então fazer o público sentir como a química da atração amorosa começa a se insinuar e crepitar, não importando a resistência oferecida por seus elementos. Darcy e Elizabeth não foram concebidos apenas para os anos 1800, mas para todo o sempre. Eis-los aqui, em 1954, apanhados pelo grande letrista Johnny Mercer: “When an irresistible force such as you/ Meets an old immovable object like me/ You can bet as sure as you live./ Something’s gotta give/ Something’s gotta give.” [Quando essa força irresístivel que é você/ Encontra este velho impassível que sou eu/ Pode apostar que enquanto você viver./ Alguém terá que ceder/ Alguém terá que ceder.]
Lizzy Bennet é a força irresistível que toda garota secretamente quer ser. Da perspectiva da meia idade, creio ser esta a mais perene de todas as fantasias femininas: achar um cara orgulhoso e durão e fazer com que ele ame a nós, e somente a nós. Afinal, quem é Christian, o bilionário distante de Cinquenta tons de cinza, senão um Darcy que tem um quarto vermelho da dor no lugar de um jardim guarnecido?
Pelo menos foi essa a minha reação adolescente ao sr. Darcy. Coisa séria para uma garota devoradora de livros angustiadamente cheia de si nos anos 1970. Antes de ler Orgulho e preconceito, minhas noções de romance vinham das fotonovelas da revista Jackie e de encontros promovidos por amigos do candidato a pretendente na lanchonete do bairro. “O Dave tá afim de você. Tá afim de uns amassos com ele, hein?”
O coração não palpitava à abordagem de Dave e seu bafo de salgadinhos. Todas as garotas são romancistas românticas, a imaginar febrilmente seus próprios futuros. Decepcionada com Dave e seu eu cheio de espinhas, comecei a elaborar intricadas fantasias de sedução dirigidas ao rosto de David Cassidy — bonito, rico, maravilhosamente inacessível. Implausíveis como fossem, esses roteiros transbordavam de desejo ardente. Assim, ao ler a obra-prima de Austen pela primeira vez, deparei-me ali com algo que já sabia, mas não conseguira ainda expressar tão bem.
Não creio ter sido uma coincidência que Jane Austen tivesse a mesma idade de Elizabeth Bennet, vinte anos, ao escrever a primeira versão de Orgulho e preconceito. Quando o romance foi revisado e publicado, em 1813, ela já contava 37 anos, uma velha solteirona. Austen tivera seus dias no mercado do casamento, aquele circo de carne jovem, ganhos e conexões. Dotes como os dela não possuíam valor de troca naquele tempo e lugar históricos. O proprietário de uma Pemberley real jamais se dignaria a notar uma mulher brilhantemente inteligente, de origem humilde, que fora obrigada a se mudar de sua terra natal em razão das brutais regras de herança masculina. Em sua ficção, Austen podia não só denunciar a situação, como também mostrar o caminho certo.
Sempre me dá vontade de chorar quando leio a parte em que Elizabeth diz a Darcy que sua ideia de uma mulher talentosa é de tal forma elevada: “Sim, abarca muita coisa. [...] Deve possuir tudo isso, e a tudo isso deve acrescentar algo mais substancial, o aperfeiçoamento de suas qualidades intelectuais por meio de muita leitura.”
Muita leitura? Oh, Jane, bendita seja. Obrigada, autora querida, por dar seu recado a todas as garotas loucas por livros, por gerações, à espera de multimilionários bonitões prontos a serem postos de joelhos por nosso conhecimento profundo da literatura do século XVIII.
Fantasia? Claro que sim. Ninguém mais do que a tia Jane, ao editar seu texto num quarto gélido, sabia que Fitzwilliam Darcy não viria em seu socorro. Dá até para ver o sorriso irônico da romancista no momento em que perguntam a Lizzy em que momento ela soube que estava apaixonada pelo sr. Darcy. “Creio que a data precisa foi a primeira vez em que vi a sua bela propriedade em Pemberley”, responde nossa jovial e esperta heroína. Garota de sorte.
Austen morreu quatro anos após a publicação de Orgulho e preconceito. Mas o amor de Darcy por Elizabeth é imortal. Por quê? Porque sua criadora escolheu acreditar que um homem podia amar uma mulher por aquilo que ela era, e, ao acreditar nisso, e escrever isso com talento transcendental, ela fez disso a realidade. Foi assim há duzentos anos e é assim que sempre será. Enquanto houver impassíveis objetos masculinos e irresistíveis forças femininas, pode apostar sua vida, alguém terá que ceder.

Um comentário:

  1. Estou chorando.
    Sim, a tia de Colin Firth é uma velhota burra. Sinto dizer que ele nasceu para esse papel (sendo Darcy duas vezes).

    Oh, Darcy, Oh Lizzie... Meu casal preferido do meu livro preferido da minha autora preferida.
    Seria demais dizer que tia Jane conseguiu criar a história mais imortal?

    Adorei, obrigada!

    liliescreve.blogspot.com

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